A Telegrafia Sem Fios em Portugal

Este texto insere-se no período 1901- 1924

Estação de T.S.F., em 1901. Desenho do jornal "O Século"


Um longo caminho foi percorrido pelas telecomunicações portuguesas antes da Telegrafia Sem Fios (T.S.F.) ser uma realidade nacional. A T.S.F. foi precedida pela telegrafia eléctrica e, ainda antes desta, pelas telegrafias semafórica e óptica.

A telegrafia semafórica foi criada em 1803, mas, em 1810, por causa da Guerra Peninsular, foi criada a telegrafia óptica para apoiar as comunicações militares nas linhas de Torres Vedras. Este género de comunicação conheceu um período de expansão - a par da telegrafia semafórica - mas acabaria por desaparecer em 1855. 

A 16 de Setembro de 1857, é inaugurado o telegrafo eléctrico em Portugal e a telegrafia semafórica acabaria por ser incorporada neste serviço em 1867. A 7 de Julho de 1880, é aprovada a Carta de Lei que organizava o Serviço Telégrafo-Postal e Faróis.

As primeiras ligações telefónicas em Portugal são ensaiadas em 1879, por Cristiano Bramão, sendo a primeira rede pública inaugurada a 26 de Abril 1882, em Lisboa, pela companhia "Edison Gower Bell Telephone Company of Europe".

Em 1900 - já a Telegrafia Sem Fios tinha alguma utilização na Europa e nos Estados Unidos - o tenente Gago Coutinho, publicou nos números 24 e 33 da "Revista Portuguesa Colonial e Marítima" desse ano, um desenvolvido e pormenorizado estudo sobre a T.S.F., trabalho inédito no nosso País e ao nível dos mais recentes progressos em T.S.F. da época. Um outro artigo foi publicado na “Revista do Exercito e da Armada”, da autoria do Capitão de Artilharia Eduardo Pellen, sobre a Telegrafia Sem Fios e a sua aplicação militar. Em 1900, existiam 8345 Km de linhas telegráficas em território nacional e 443 estações. Os telegramas transmitidos e recebidos andavam na ordem dos 3 500 000 por ano.

"Revista Portugueza Colonial e Maritíma" e "Revista do Exército e da Armada" (1)

A 12 de Fevereiro de 1901, o “Diário de Notícias” dava conta do interesse do governo português na Telegrafia Sem Fios para fins comerciais, tendo sido incumbida a Direcção Geral dos Correios e Telegraphos de adquirir aparelhos de T.S.F. «que podiam ser do sistema Marconi ou de outro semelhante e realizar uma experiência entre o castelo de S. Jorge e Palmela». Segundo o governo, estes aparelhos seriam depois colocados noutros locais onde seriam úteis à navegação ou ao comércio. Estas experiências não chegaram a ser efectuadas e os aparelhos que chegaram mais tarde a Portugal tiveram como primeiro destinatário o exército.

A 25 de Fevereiro de 1901, noticiava o correspondente de Paris do jornal “O Século” que «(...) O engenheiro electricista Galbraille partiu para Lisboa, onde vae tomar parte nas experiencias da telegraphia sem fios, pelo systhema Tesla. Este ultimo espera communicar facilmente entre Nova Jersey e a costa de Portugal.» Se a experiência se fez ou não, não há registos que o demonstrem, mas se esta situação se deu, então realizou-se muito antes do ensaio de Marconi, a 12 de Dezembro de 1901, entre Poldhu, Cornualha, e St. John's, Terra Nova, que  é considerada a primeira transmissão através do Atlântico, via T.S.F..


Notícia no jornal “O Século”, de 25 de Fevereiro de 1901 (2)

No início do Século XX, existiam vários sistemas concorrentes de T.S.F.: O Marconi propriedade do inventor italiano, o Slaby & Arco - uma associação do professor Eduard Brandly com o Barão Von Arco  que mais tarde se transformaria na Slaby & Arco, Allgemeine Elecktrizitäts – Gesellschaft (AEG) - o Tesla, do inventor Croata, o DeForrest, do americano Lee DeForrest, o Ducretet-Popov e o Poulsen, do dinamarquês Valdemar Poulsen. Existiam outros sistemas de T.S.F., mas estes eram os mais comercializados.

As primeiras experiências com a Telegrafia Sem Fios em Portugal foram realizadas a 9 de Março de 1901, em Lisboa, entre o forte da Raposeira na Trafaria e o Regimento de Engenharia, no forte do Alto do Duque. Dirigiram estes testes, desde o forte da Trafaria, o Capitão João Severo da Cunha e o Tenente Pedro Alvares. Assistiu a este primeiro ensaio o Ministro da Guerra da altura e o comandante da 1ª. divisão de engenharia.

Para os radio-telegrafistas terem a certeza que os aparelhos da marca Ducretet-Popov funcionavam sem falhas, transmitia-se um telegrama que o posto receptor retransmitia para o posto emissor inicial. A primeira experiência foi coroada de êxito.

O cruzador “D. Carlos” foi equipado com o equipamento de T.S.F. retirado do Forte do Alto do Duque e foi testado nas manobras navais de 19 de Agosto de 1901. Estas foram as primeiras experiências realizadas em Portugal e foram efectuadas pelos militares do exercito que mostravam as vantagens deste sistema, comparado com o sistema telegráfico com fios. A eficacia da T.S.F. já tinha sido comprovada noutros países. Desde 1897, que existia em Spezia, Itália, um posto de Telegrafia Sem Fios que comunicava com a armada italiana e, desde 1899, que a armada inglesa comunicava entre si através da T.S.F..

Portugal foi acompanhando o evoluir da T.S.F. e, em 1901, foram aprovados os princípios gerais dos Correios e Telegraphos. A 24 e a 30 de Dezembro, são aprovados os decretos que determinam os serviços e a distribuição do pessoal.

O jornal “O Século” publicou os regulamentos completos dos correios e telégrafos nas suas edições de 27 e 30 de Dezembro de 1901. Juntamente com estes decretos são aprovados outros que «(...) limitam no governo o direito de executar experiências e ensaios de telegraphia, eléctrica ou de outra espécie, comprehendendo neste exclusivo a telegraphia sem fios.(...)» A 26 de Maio de 1902, são efectuadas mais algumas experiências de T.S.F.. Trocaram-se mensagens entre a estação de semáforos de Cascais e o cruzador “D. Carlos”. Esta estação estava equipada com um equipamento da marca Slaby & Arco. Esta experiência de T.S.F. apenas mereceu umas linhas explicativas do feito na imprensa da época. Entre outras noticias apenas o titulo «Telegraphia sem fios» se destacava.

Cabeça do jornal “O Século” de 10 de Novembro de 1901. Nesta edição saiu o primeiro artigo exaustivo sobre a Telegrafia Sem Fios. A segunda parte do artigo saiu a 8 de Dezembro de 1901 (2)

A 11 de Fevereiro de 1905, a “Direcção Geral de Telegraphos, Correios e Telefones” firmou um contrato provisório com a Eastern Telegraph Company - uma companhia de cabos submarinos de telecomunicações - para a montagem de postos radio-telegráficos nos Açores, para terminar com o isolamento entre as ilhas do arquipélago. Os açorianos estavam ligados ao continente através de um cabo submarino. A 4 de Março de 1907, o contrato passou a definitivo.

A Eastern Telegraph Company começou por tentar adquirir equipamento à companhia Marconi, mas esta não se quis sujeitar às condições impostas pelo governo português. No entanto, também as condições da MWTCL eram excessivamente exigentes. Os sistemas necessários foram então adquiridos à Amalgamated Radio Telegraph Company que explorava os sistemas de Poulsen e os de DeForest.

A entrada dos sistemas da MWTCL dá-se pela mão da Marinha Portuguesa, que, em 1909, equipou todos os seus cruzadores com sistemas de 1,5 kW. A base da opção pelos sistemas Marconi deve-se a um parecer elaborado por uma comissão nomeada pelo rei D. Manuel II, sendo composta pelo capitão-de-mar-e-guerra, António de Almeida Lima, o capitão-tenente Apolínio Gomes da Silva Rodrigues, os primeiros-tenentes Victor Leite de Sepúlveda e Manuel Vicente Bruto da Costa e o segundo-tenente João Júdice de Vasconcelos que, em 1926, ocuparia funções como administrador delegado da Companhia Portuguesa Rádio Marconi. 

Depois de examinar as propostas da MWTCL e da Telefunken, para o fornecimento de um posto costeiro T.S.F. de 5kW, a opção recaiu sobre a primeira por ter sido o sistema adoptado pela frota de guerra britânica. Dado que as máquinas Marconi não eram compatíveis com aparelhos de outros fabricantes, o propósito de manter uma uniformidade de sistemas entre aliados pesou na decisão. O exército, no entanto, preferia os sistemas alemães da Telefunken.

Em 1912, a Companhia Marconi é contactada formalmente pelo governo português para a instalação de vários postos de T.S.F.. É assinado um contrato provisório, a 22 de Fevereiro de 1912, entre o Estado português e a casa Marconi para a instalação de estações radio-telegráficas em Lisboa e Porto e postos de T.S.F. em S. Miguel, Funchal e S. Vicente de Cabo Verde. Ainda assim, o acordo teria ainda de ser ratificado pelo parlamento. Devido a estes desenvolvimentos, a 22 de Maio de 1912, Guglielmo Marconi chega a Lisboa, vindo de Madrid, onde esteve em negociações com o governo espanhol, para o uso dos seus sistemas de T.S.F..

O interesse pelas telecomunicações foi crescendo e, em 1907, é publicado em Lisboa o livro "A Telegraphia Sem Fios" da autoria de Amadeu Vasconcelos. Na primeira década do século XX, existiram muitas tentativas para construção de equipamentos de T.S.F., em Portugal. Algumas das experiências provocavam interferências nas comunicações oficiais. Com este cenário, em 10 de Julho 1908, é publicada uma lei sobre os aparelhos de Telegrafia Sem Fios e que impedia que fossem usados sem uma licença concedida pela Direcção Geral dos Correios, Telégraphos e Faróis. A lei na forma como foi redigida entende-se que se proíbe tanto a emissão como a recepção de sinais rádio. 

Em virtude de um aumento do interesse em torno da electrotecnia a revista "Electricidade e Mecânica", do Engenheiro Luiz de Sequeira Oliva Júnior, inicia a sua publicação em 1909, na cidade de Lisboa. Luiz de Sequeira Oliva Júnior além da revista “Electricidade e Mecânica”, publicou vários livros técnicos sobre electromecânica – entre eles “A Telefonia e a Telegrafia Sem Fios” - e foi colaborador da “Enciclopédia Portuguesa e Brazileira”.

«A Telefonia e a Telegrafia Sem Fios» - uma das obras de Luiz Sequeira Oliva Júnior. (1)

A 25 de Maio de 1911, é criada a Administração Geral dos Correios e Telégrafos, que fica incumbida de passar as licenças para rádio-telegrafistas civis. Em Maio de 1912, Alberto Carlos de Oliveira, que vivia em Cabo Verde, é reconhecido oficialmente como o primeiro rádio-telegrafista português amador. Anos mais tarde foram-lhe atribuídos os códigos P3AA – mais tarde CT3AA - enquanto viveu na Ilha da Madeira, e CT1DX, quando passou a morar em Lisboa.

Alberto Carlos d'Oliveira em 1914 (2)

Existe, em 1912, um contacto do governo português com a Companhia Marconi para a instalação de vários postos de T.S.F.. O jornal “O Século” de 23 de Fevereiro de 1912, dava conta de um acordo no gabinete do Ministro do Fomento entre o estado português e a casa Marconi para instalação de estações radio-telegráficas em Lisboa e Porto e postos de T.S.F. em S. Miguel, Funchal e S. Vicente de Cabo Verde.

Vindo de Madrid, a 22 de Maio de 1912, Guglielmo Marconi chega a Lisboa. Depois de ter negociado com o governo espanhol o seu sistema, encetou conversações com o governo português. Desta visita resultou um contrato para o estabelecimento de instalações de T.S.F. em território nacional, mas nada foi feito pois o governo faltou às obrigações que contraíra com a Marconi.  

Marconi (ao centro) recebido por Bernardino Luís Machado Guimarães (o segundo a contar da esquerda, de barba), presidente da Sociedade de Geografia de Lisboa, a 22 de Maio de 1912. Bernardino Machado seria, posteriormente, o terceiro e o oitavo presidente eleito da República Portuguesa. O seu neto, Bernardino Machado Guimarães, formou-se em engenharia e teve uma empresa de venda e instalação de material de radiodifusão. O seu bisneto, Bernardino Guimarães, foi co-fundador da Rádio Caos, no Porto, em 1982, estando ainda ligado à radiodifusão através da Rádio Manobras.

Marconi visitaria Portugal três vezes para negociações com os sucessivos governos até ser firmado um contrato que culminaria na criação da Companhia Portuguesa Rádio Marconi, S.A.R.L., em 1925. A ultima vez que Marconi se deslocou a Portugal foi em 1929, para tentar melhorar o relacionamento da sua companhia com a Administração Geral dos Correios e Telégrafos que defendia os interesses das companhias de cabos submarinos. 

Com o início da primeira grande guerra, os governos passam a dar uma maior importância à Telegrafia Sem Fios. As vantagens da comunicação à distancia sem ligações físicas são evidentes nos campos de batalha e a T.S.F. vê o seu desenvolvimento ser mais rápido. Não existia nenhum exercito beligerante que não tivesse ao seu dispor aparelhos de Telegrafia Sem Fios e, já nalguns casos, de Telefonia Sem Fios. A primeira guerra mundial intensificava-se e em Fevereiro de 1916, a Inglaterra pede a Portugal - seu aliado há mais de 500 anos - para apresar nos seus portos os navios alemães lá fundeados. Esta acção leva a uma declaração de guerra a Portugal por parte da Alemanha e neste cenário o rádio–telegrafista Alberto Carlos de Oliveira, a trabalhar na Estação Telegráfica de S. Vicente de Cabo Verde, serve de posto intermediário entre a esquadra Britânica no Atlântico Sul e o almirantado em Londres.

Estação Telegráfica de S. Vicente, Cabo-Verde (1)

T.S.F. foi colocada ao serviço do Corpo Expedicionário Português, embora estivesse muito limitada devido a dificuldades económicas e à agitação social que se sentia em Portugal, mas mesmo assim, cada divisão do exercito português tinha uma secção de T.S.F. com dois oficiais para a operarem. O governo Inglês patrocinou a instalação na Ilha da Madeira, na Quinta de Santana, de um posto de Telegrafia Sem Fios, destinado a receber informações sobre a guerra e a divulgá-la através dos periódicos locais. Este posto deixou de ter interesse ao governo britânico depois da I Guerra Mundial e foi encerrado a 2 de Abril de 1919. 

As instalações da Quinta de Santana ainda chegariam a despertar algum interesse no governo português, mas desistiu-se deste posto por razões nunca explicadas. Curiosamente, por despacho do Ministério das Finanças em 12 de Dezembro de 1921, foi autorizada a instalação de um posto Rádio-telegráfico na ilha da Madeira mas também tal instalação nunca chegou a concretizar-se. Só em 1926 é que a Companhia Portuguesa Rádio Marconi instalaria na Madeira um posto de T.S.F.. 
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Diário do Governo de 8 de Abril de 1916 (1)

Um ano depois, José Joaquim Sousa Dias de Melo, que tinha frequentado uma escola de preparação liceal em França e na qual tinha assistido às primeiras experiências de rádio, requer uma licença de posto de T.S.F.. Neste ano de 1917, ele começou as suas experiências em Lisboa. Anos mais tarde, com a reformulação da lei das telecomunicações, passam a ser atribuídos códigos aos radioamadores, e embora J. J. Sousa Dias de Melo tenha uma licença desde 1917, o código P1AA seria atribuído a outro radioamador - Abílio Nunes dos Santos Júnior. A José Joaquim Sousa Dias de Melo foi-lhe atribuído o código de chamada P1AB, pois ele já detinha o código P1PS.

               Abílio Nunes dos Santos Júnior - P1AA e José Joaquim Sousa Dias de Melo - P1AB (2)

Pelo resto do país, lentamente, vai-se instalando a ideia da comunicação via ondas electromagnéticas, as experiências não terão sido muitas pois não há registo disso e porque a situação socio-económica do país e a guerra limitavam em muito a acção dos entusiastas. Mesmo com o cenário negro da I grande guerra, na cidade de Tavira, Luís A. Pereira Chaves (P1AC) fez as suas primeiras experiências com um equipamento de T.S.F..

Em 1918, Fernando dos Santos Pinto, um aluno do Instituto Superior Técnico começou a ensaiar equipamentos de T.S.F., mas em consequência da situação social bastante instável um grupo de revoltosos apreendeu-lhe o material, o que o impediu de continuar as experiências. Na década de 1920, a Fernando dos Santos Pinto seria atribuido o código de chamada P1AI

Os receptores particulares existentes em Portugal entre 1902 e 1920, eram quase todos - senão mesmo todos - construídos pelos próprios entusiastas da T.S.F.. Estes aparelhos eram muito rudimentares, pois só captavam os postos mais potentes ou mais próximos, sendo que a esmagadora maioria dos “senfilistas” escutava as transmissões musicais provenientes do estrangeiro - quase todas experimentais - num receptor de Galena. Os emissores particulares eram muito poucos. Naquela altura os receptores de T.S.F. eram ainda detidos só por radioamadores. Alguns possuíam estações de emissão, mas comunicavam entre si apenas por passatempo, embora as mensagens fossem, muitas vezes, enviadas a um auditório indefinido na esperança que fossem captadas por outro radioamador, o mais longe possível da sua localização. 

Com o final da I Guerra Mundial, vários rádio-telegrafistas foram desmobilizados, mas o gosto pela T.S.F. ficou. Com postos de recepção e de emissão foram efectuadas várias experiências com emissões grafia e, com equipamentos mais complexos, com circuitos de válvulas termiónicas, em fonia. O desenvolvimento dos circuitos electrónicos e a maior facilidade de acesso a componentes electrónicos, levaria à criação das primeiras estações de radiodifusão, na década de 1920. 

A 21 de Abri de 1921, Marconi aportou em Lisboa, no seu iate "Electra". Esta visita durou três dias e teve mais a ver com ciência que com negócios. Um novo contrato com MWTCL só foi celebrado a 8 de Novembro de 1922. No acordo constava a constituição de uma companhia portuguesa de Telegrafia e Telefonia Sem Fios, sob supervisão da MWTCL. No texto do contrato nasce, oficialmente, a Companhia Portuguesa Rádio Marconi, S.A.R.L. (CPRM) e concedida a exploração da Telegrafia e Telefonia Sem Fios em Portugal, por um período de 40 anos, a esta companhia.

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Noticia do Jornal “O Século” de 6 de Setembro de 1901, sobre a primeira experiência com a Telegrafia Sem Fios a bordo do cruzador “D. Carlos” a 19 de Agosto. (2)


Telegraphia sem fio

Publicamos em seguida o primeiro de uma série de artigos ácerca da telegraphia sem fio, e que se referem ás experiencias realizadas durante as ultimas manobras navaes. O assunto é interessante e novo no nosso paiz. Pode, pois, ver-se que as experiencias da telegrahia sem fio deram resultados satisfactorios e que, com o auxilio de semelhante transmissão, muito se pode aproveitar em tempo de guerra, procedendo-se com a prudencia necessaria, de modo a evitar que o inimigo receba tambem as communicações telegraphicas.
As manobras navaes revelaram tambem, como já há tempos frisámos, a necessidade da acquisição de torpedeiros, de preferencia aos grandes navios, que, além de custarem muito dinheiro, sacrificio com que não podemos, sorvem ao mesmo tempo uma diaria sustentação extraordinariamente cara. Os torpedeiros, sob esses dois pontos de vista, são de uma barateza excessiva, em relação ao custo dos outros navios. De resto se tivermos em vista as experiencias ultimamente realisadas com os submarinos, deprehende-se o pessimo futuro reservado aos grandes navios de esquadra. Sem o esperarem, n’um momento, afundam-se no meio do mar, sacudidos pelo torpedo de algum submarino cauto ou de algum torpedeiro ousado.
A acquisição de torpedeiros modernos impõe-se, repetimos, de preferencia a quaesquer outros barcos, assim como de submarinos, que melhor cumpram o fim a que são destinados. Temos ahi o submarino Fontes, que parece tambem participar das qualidades dos submarinos, e o governo não praticaria nada de reprovavel, antes pelo contrario, se o estudasse e analysasse, de accordo com o seu inventor, cotejando ao mesmo tempo os modelos estrangeiros.
As manobras não foram inuteis, pelo ensinamento tirado d’ellas e tambem pela confirmação, que era escusada, da prudencia, da disciplina e valentia dos nossos marinheiros, desde os officiaes mais superiores até ao ultimo dos grumetes. Vae, em seguida, o primeiro artigo da série, a que acima referimos:

Foram muito superiores aos que se esperavam os resultados obtidos com a telegraphia sem fio nas experiencias a bordo do cruzador D. Carlos, por occasião das ultimas manobras da divisão naval. Foram tres os dias em que essas experiencias se realizaram-dia da partida da divisão naval, dia da entrada das esquadras inglezas na bahia de Lagos e dia do regresso da divisão a Lisboa, Isto é, 19 e 30 de agosto e 2 de setembro. No primeiro e ultimo d’esses dias ellas tiveram logar entre o cruzador D. Carlos, em marcha, e o forte da Rapozeira, na Trafaria e no dia 30 entre o cruzador D. Carlos, ancorado na bahia de Lagos, e os navios das esquadras inglezas do Canal e do Mediterraneo, os quaes, tendo-se concentrado nas alturas do cabo de S. Vicente, demandaram na manhã d’aquelle dia a mesma bahia.
Os trabalhos da telegraphia sem fio estiveram a cargo, a bordo do D. Carlos, do sr. Capitão de engenheria Pedro Alvares e, no forte da Rapozeira, do sr capitão da mesma arma João Severo Cunha; n’uma e outra estação o serviço foi executado em harmonia com umas instrucções que este distincto official elaborou por occasião das experiencias há tempos feitas no campo entricheirado de Lisboa na presença do sr. Ministro da guerra, e de que este jornal deu desenvolvida noticia.
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No dia da partida a primeira parte da experiencia foi um pouco accidentada, devido a varios contra tempos que á ultima hora surgiram e foi preciso reparar de prompto, filhos, uns, de mero acaso e, outros, da muita pressa com que os apparelhos foram montados e do pouco ou, melhor, nenhum tempo que houve para proceder ás convenientes experiencias preperatorias.
Na Rapozeira há já de há muito uma estação montada; no D. Carlos, porém, nenhuns apparelhos havia, e foi, portanto, preciso transportar para lá a segunda estação pertencente ao regimento de engenharia. Essa estação, devido a uma carangueija supplementar, que foi necessario addicionar ao mastro da ré, a fim de aumentar a altura da antenna, só pode estar prompta à uma hora da tarde da ante-vespera da partida e n’esse dia pouco se trabalhou para a Rapozeira, porque uma ou duas horas depois o D. Carlos, voltando, por causa da maré, a proa para a barra, impossibilitou a transmissão da onda hertziana, pois que a mastreação, interpondo-se entre as duas estações, a absorvia quasi por completo.
Em todo o caso, tanto o sr. Capitão Cunha como o sr. Capitão Alvares sahiram do D. Carlos, convencidos de que, apezar de se não avistar do fundeadouro a Rapozeira, a transmissão e a recepção se fariam perfeitamente, em virtude do phenomeno da diffracção. No dia seguinte, isto é, na vespera da partida, os mesmos officiaes voltaram às 9 horas da manhã para bordo do D. Carlos, a fim de afinar os apparelhos, mas pouco depois, notaram que os accumuladores estavam baixos e que era preciso, portanto, carregal-os immediatamente. Por causa d’este contra-tempo, chegou-se ao proprio dia da partida da esquadra sem que tivesse havido uma única experiencia seguida e demorada entre o D. Carlos e a Rapozeira. Nesse dia o sr. Capitão Alvares, que chegara, como era natural, primeiro ao seu posto, fez ás 10 horas a 1.ª chamada, mas sem resultado algum, e assim continuou a succeder desde essa hora até ao momento em que o D. Carlos, tendo, junto com o resto da divisão, levantado o ferro, chegou às alturas do Lazareto.
A que attribuir semelhante contrariedade? A qualquer desarranjo na estação da Rapozeira ou á imposssibilidade de communicações entre o cruzador e aquella estação? A uma e outra coisa. Até ás onze e tres quartos, a estação da Rapozeira esteve impossibilitada de trabalhar, por causa d’um desarranjo a que adiante nos revfeiremos; depois d’essa hora, primeiro a mastreação do navio que aproára já para a barra e depois a garnde proximidade dos montes da margem esquerda do Tejo, a montante da Rapozeira, impediram que se podesse fazer a communicação entre o navio e a terra.
Logo, porém, que o D. Carlos chegou ás alturas do Lazareto, a onda, desembaraçada de um e outro obstaculo, chegou franca ao apparelho receptor e appareceu co toda a nitidez, na fita Morse de bordo, a transmissão da Rapozeira.
Do D. Carlos respondeu-se-lhe com um telegramma de serviço, indicando o funccionamento perfeito dos apparelhos.
O sr. Capitão Cunha enviou então um telegramma de boa viagem para o commandante da esquadra, o qual lhe foi entregue logo que do navio se deu para a Rapozeira a respectiva conferencia regulamentar.
Depois d’isto, como de bordo nenhum telegramma se mandasse, o sr. Capitão Cunha enviou ao sr. Capitão Alvares um longo telegramma, communicando-lhe que a estação da Rapozeira não pudera funccionar antes das 11 e tres quartos, por terem apparecido exgotados os elementos de pilha secca que serviam n’um dos apparelhos e fora necessario substituir á ultima hora por elementos de pilha ordinaria Leclanché.
Este telegramma appareceu com alguns brancos, porque n’esta altura os navios, que se seguiam na cauda da columna, interpunham-se algumas vezes entre a Rapozeira e o D. Carlos.
Comprehende-se que, se este navio seguisse na cauda da divisão, semelhante inconveniente se não teria dado; mas comprehende-se tambem melhor que, não sendo as experiencias de telegraphia sem fio um dos objectivos mais importantes das ultimas manobras navaes, de forma nenhuma o navio chefe podia sahir a barra n’aquella posição.
O sr. Capitão Alvares procurou preencher os brancos do telegramma recebido, pedindo para a Rapozeira a repetição do mesmo. Esta foi demorada para se obter o fim desejado, de modo que, quando de bordo se procurava transmitir para o sr. Ministro da marinha um telegramma que o sr. Commandante da esquadra entregou, depois de se ter feito a salva do estylo ao hiate real, a divisão naval estava fora do alcance efficaz dos apparelhos, e á terra só chegavam letras e algumas vezes palavras desconnexas, mostrando ter-se attingido o limite de distancia para a transmissão efficaz.
N’esta primeira experiencia concluiu-se que com apparelhos que possuimos, e para as alturas de antenna empregadas-uns 30 m, tanto na Rapozeira como no D. Carlos- o alcançe maximo obtido era de 20 kilometros, pouco mais ou menos.

Esta noticia foi transcrita na integra com a linguagem utilizada na altura e exactamente como foi publicada, inclusivamente com os erros tipográficos.

(1) – Colecção particular de Jorge Guimarães Silva
(2) –Arquivo da Biblioteca Publica Municipal do Porto

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Última actualização: 06 de Fevereiro de 2022

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